O trabalho
infantil, no período conhecido como Revolução Industrial, cria nas pessoas uma
consternação enorme. Isso porque as historiografias que se dedicam a esse
determinado período histórico, por vezes, ilustram a ideia de que a exploração do
trabalho infantil é fruto unicamente da Revolução Industrial.
Um dos
fundamentos básicos da ciência histórica atual é contextualizar os
acontecimentos e tentar, ao máximo, aprofundar-se no tempo histórico em que os
acontecimentos ocorreram, sem se deixar levar por anacronismos – enxergar um determinado
acontecimento passado com os olhos de hoje. É infrutífero tecer críticas ao
trabalho infantil na Revolução Industrial apoiando-se em valores da atualidade,
tais como exploração do trabalho infantil.
É muito
comum vermos na literatura que se dedica ao tema em questão, representações
perversas de exploração de crianças no processo da Revolução Industrial. Essa
visão exclui de suas análises um importante mecanismo científico: análise calcada dentro do processo
histórico. Certa visão, que é inclusive partilhada por muitos, afirma que a
exploração do trabalho infantil é condição sine
qua non no processo de industrialização inglês, por exemplo. Nada seria mais fora de
contexto do que afirmar isso.
É necessário, pois,
ir e ‘’se imaginar’’ naquele tempo da Revolução Industrial para então termos
uma visão mais esclarecedora de tal período. A maneira como as pessoas inglesas
davam significado ao trabalho era fortemente influenciada pela religião oficial
inglesa: o anglicanismo. Uma mistura de catolicismo (na organização da Igreja)
e do protestantismo (no dogma da fé). O trabalho, na visão inglesa, não era uma
penitência, e sim uma vocação. Isso tem impacto tão forte que a nobreza inglesa
(gentry) ocupava boa parte de seu tempo com o trabalho, assim se opondo completamente
as outras nobrezas de caráter católico na Europa, como a da França por exemplo.
O imaginário
acerca do trabalho na Inglaterra, então, tinha uma noção de predestinação dada
aos homens, isso é válido antes da Revolução Industrial e durante tal período
analisado. Esclarecer isso é fundamental para que não causemos contradição nas
análises. Obviamente que a inserção das máquinas e o ‘’boom’’ populacional das
cidades mudaram profundamente as relações em determinadas áreas da vida humana
daquele tempo. Mas como bem percebido por Fernand Braudel, o tempo em que
ocorrem as mudanças na cultura ou no imaginário é ''quase perpétuo''. Portanto uma
mudança no imaginário (subsidiado pela religiosidade) que construía um
determinado significado do trabalho para os ingleses, não pode ser sinalizado
em tão pouco tempo (período de industrialização intensa), analisado sob a ótica da cultura.
O que o
parágrafo acima transparece é que existe uma questão que precisa ser
respondida: como o trabalhador inglês viu esse processo ''revolucionário''? Certamente,
aquela grande quantidade de indivíduos expulsos das terras comunais pelo
aparato estatal da época viu-se em maus lençóis, e essa massa comporia uma boa
parte da mão de obra nos momentos iniciais da industrialização. Aliás, é bom
salientar que essa expulsão já nos dá um sintoma de que, já naquela época, os
proprietários das indústrias fariam um conluio com a estrutura estatal vigente naquele momento para atender os seus interesses.
A pergunta
feita no parágrafo acima deve ser respondida levando em consideração o
imaginário e os valores culturais presentes nos populares em relação ao
trabalho. Dado isso não encontramos naquela época valores morais, éticos ou
quaisquer outros que sejam em relação à exploração do trabalho infantil, ou a
exploração geral dos trabalhadores. O trabalho infantil existia de forma
intensa no modo de sobrevivência camponesa e também no modo de sobrevivência
industrial, não havendo sequer profundas mudanças culturais em relação ao
trabalho em tais transições. Isso nos leva a inferir que a Revolução Industrial
não é a causa da exploração do trabalho infantil, mas sim uma mudança das funções
em relação aos trabalhos exercidos pelas crianças– antes funções de camponês e
depois funções de indústria. O
trabalhador inglês não se viu explorado nem as famílias viram suas crianças serem
exploradas, dentro de suas concepções próprias. O que esses trabalhadores viram foi
um aumento populacional nas cidades depois de um tempo relativamente longo.
É necessário
mergulharmos no contexto da Revolução Industrial para entendermos o por quê de se
ter trabalho infantil. E mais além: quais eram as percepções culturais em
relação às crianças naquela Inglaterra? Certamente não eram as que temos hoje.
O que era ser criança no século XVIII Inglês? Tentar responder essa questão com
premissas culturais atuais não é, de fato, o melhor caminho. O trabalho era
assim tão abominável para as crianças inglesas do período aqui retratado? Se
sim, o trabalho também era extremamente terrível nos campos da ordem antiga. Os
trabalhadores que deixaram de ser camponeses estavam em piores condições nas
fábricas do que se estivessem na ordem antiga? O crescimento populacional das
cidades nos mostra que houve uma melhora nas condições de sobrevivência. Óbvio
que a Revolução Industrial não foi um paraíso na terra, mas se comparada com a
ordem antiga, houve, pelo menos, uma mínima melhora.
Por fim, a
Revolução Industrial foi um movimento humano – processo que se estabeleceu
dentro de um contexto histórico que o explica. Querer retirar esse processo de
seu momento histórico é assassinar o método da História. Não se pode, nem se
devem utilizar valores culturais estabelecidos em nossa atualidade para querer
montar a Revolução Industrial como sendo um monstro abominável destruidor de
trabalhadores indefesos. Salienta-se, concluindo, que é necessário mergulhar nos
valores culturais do século XVIII para que se explique o fenômeno típico e
específico da época em tela.